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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A pequena romena.









  - A sério, vá lá.

persuadia-me em dedos dos pés esticados nos chinelos de praia enquanto que limpava a ramela do olho num esgar de lábios, como que incomodada talvez pela minha aparente indiferença ou pela repetição da lida ou pela ramela teimosa, não decifrei. Imperava a missão do regateio.

- Já disse que não.

insisti mas desta vez incomodado por uma culpa a que queria fechar os olhos. Coisas da economia que dobrei na minha arrecadação das coisas que julgo saber, ou de valores morais ou algo mais que se quisesse revelar ao meu entendimento e que não consegui tornar concreto para aliviar a consciência, recusaram-lhe a ajuda num reflexo de hábitos tão ríspidos quanto o meu tom. Incomodavam-me o plano sobranceiro quando olhava para o seu pouco mais que um metro de altura, o pedestal que vestia ante os seus trapos, a civilização enrolada no jornal que segurava na mão. Ela, já de duas vistas tão limpas quanto o possível, de olhar cristalino ainda intacto pela inocência e pelos poucos anos em que ainda não sabe bem o que é o mundo esboçou um sorriso manhoso que me feria pela inocência mercantilizada no ofício. Não cuidava que a Roménia escura e tão suja no pouco que a imaginava produzira uns olhos como diamantes ainda húmidos do esfreganço de há pouco, que vieram dar ao Largo da Estefânia na graça de uns passinhos míudinhos na rota das pastelarias da zona. 
 Um apelo dela a alguma bondade, contra a regra minha de negar dar a quem explora. Talvez oferecer-lhe um bolo, não fosse a transparência das intenções travar a lealdade que se pretendia num simples pedido. Era a fome verdadeira? Debatia-me por dentro numa lógica castradora do altruísmo ou o que é que quer que seja aquilo que se faz de boa vontade. Seria um medo avarento de me ser levado um pouco do coração por um euro? E ela, alheia a isto tudo lia-me apenas um rosto de olhos e lábios horizontais, nivelados pela simetria facial de concentradamente arranjar espaço na mesa para o jornal antecipando a chegada do refrigerante e do salgado.

- Dá

 mandou na suma sintetização de uma vontade em que o tom ou os modos nada pareciam valer perante a objectividade do que queria e pousou a mão não respondida na mesa provocando-me, mexendo-me no canto das folhas.

- Já te disse que não.

respondi impotente perante uma tão segura pequena, munida de criancice, e eu, um senhor homem já feito, subitamente abatido de insegurança de quem já perdera há muito uma criança interior capaz de lhe responder na mesma liberdade das normas relacionais receava que o meu lanche iminente agudizasse o confronto interior. Resguardei-me entre as páginas que lhe puxei debaixo dos dedos e no ruído das conversas e das chávenas.

- Por favor senhor.

pediu novamente passando da mendicidada à insolência pela insistência a que sabia não ter resposta. Busquei em mim se valeria a pena a suficiência da bondade ante o sequestro daquela chantagem com doze anos de idade e alguns pensos rápidos na mão. Pousei o jornal e fitei-a.

- Quantas vezes é que tenho que te dizer?


Novamente a minha aspereza contundia na criança, e era a mim que doía apesar de toda a sua farsa. Apanhou uns traços de cabelo que se deprenderam para detrás da orelha com a mão pequenina que saía da manga comprida, mostrando apenas os dedos encardidos e as unhas sujas e apesar de tudo isto, uma inocência gritava debaixo de todo o trapo que a vida ainda tão por começar lhe vestia. Virou as costas mecanizada pelo hábito da recusa e partiu na altura em que o meu lanche chegou e no princípio da ausência dela e no pouco que ela me disse, tanto ela me falava na soma dos breve anos que tinha.


 - Espera aí! Queres um bolo?

respondeu-me que sim no olhar vencedor da mentira à minha questão brusca, e eu, no conforto de um conflito moral desarmadilhado, sem ignorar a vítima e sem ser refém, mandei-lhe vir uma torrada e um copo de leite.
Tarde fora descompliquei-me nas letras do jornal.